segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

A tutela militar que continua, 27 anos depois

Ou 122 anos depois -- afinal, não foram os militares que proclamaram a República, em 1889? A forma como foi feita a transição da ditadura militar (1964-1985) para o atual regime representativo burguês levou a que tivéssemos a continuação de muitas estruturas autoritárias, a começar pelas próprias forças policiais, mantidas intactas. Mas não foi só. Um governo que põe em prática o desenvolvimentismo, com muitas obras para empreiteiras, financiamentos públicos fartos para os empresários, lucros altíssimos para os banqueiros e a corrupção de costume é tudo que o capital quer. Se isso ainda vem num regime considerado democrático, com eleições periódicas, poderes legislativo e judiciário funcionando, liberdade de imprensa etc., aí então é o paraíso. Não é incrível que estejamos falando dos governos de um operário que fez oposição à ditadura e de uma ex-presa política que fez parte da oposição armada? Não é incrível que estejamos falando de governos de um "Partido dos Trabalhadores", que teve entre seus princípios fundadores a construção do socialismo? Em todos os países da América do Sul, quando a esquerda chegou ao poder, ou mesmo antes, houve um acerto de contas com as ditaduras militares -- não por revanchismo, mas porque a ordem democrática é diferente da ordem autoritária e isso precisa ficar marcado. É preciso marcar que a ditadura foi uma excrescência, que daqui por diante será diferente e não toleraremos novos golpes. Punir os ditadores, golpistas, torturadores e assassinos é necessário para que afirmar a democracia. Aqui, no entanto, foi diferente e continua sendo, como demonstra o recente fato de a filha de um desaparecido ser impedida de falar (!) numa solenidade por pressão dos militares. Nossa "democracia" foi uma concessão dos militares. Este foi o resultado do acordo das elites que derrotou a campanha das diretas em 1984 e nos deu mais um presidente eleito no colégio eleitoral. Os generais brasileiros nunca foram derrubados do poder, saíram seguindos suas próprias regras do jogo, elaboradas pelo "bruxo" Golbery e pelo "pastor" Geisel. E o último general presidente, do alto da sua soberba, ainda disse que queria ser esquecido... Os militares nos deixam ir e vir, votar e ser votados etc. e tal, mas continuam a postos para intervir quando forem "chamados" (artigo 142 da Constituição). Essa ideia de tutela militar só deixará de existir no imaginário brasileiro quando os civis e iguais fundarem uma nova ordem nacional estabelecendo que deles emana todo o poder, sobre o qual ninguém nem instituição alguma pode prevalecer.
OBS: O autor do artigo abaixo não é jornalista nem político nem pertence às gerações que lutaram contra a ditadura; é filósofo com formação psicanalítica e tem só 38 anos.

Da CartaCapital.
À sombra da ditadura
Vladimir Safatle
Este será um ano lembrado, entre outras coisas, como aquele no qual o Brasil se viu assombrado por seu passado. Durante décadas, o País tudo fez para nada fazer no que se refere ao acerto de contas com os crimes contra a humanidade perpetrados pela ditadura. Isso o transformou em um pária do direito internacional, objeto de processos em cortes penais no exterior. Contrariamente a países como Argentina, Uruguai e Chile, o Brasil conseguiu a façanha de não julgar torturador algum, de continuar a ter desaparecidos políticos e de proteger aqueles que se serviram do aparato de Estado para sequestrar, estuprar, ocultar cadáveres e assassinar.
A íntegra.