segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

A entrevista de Delfim Netto ao jornal Valor

Lançado no fim dos anos 90, quando a ex-grande imprensa já era velha e de direita, o jornal Valor (Econômico) conserva praticamente quase toda a inteligência que ainda resta nos "grandes" veículos impressos. É um jornal para a elite intelectual, inclusive a elite de direita, que precisa se informar e que sabe que não pode confiar em publicações rasteiras como Veja, Folha etc., feitas para enganar o povão, especialmente o povão que se considera informado. Valor mostra como a imprensa já foi e como pode ser. Vivemos numa época de profundas e rápidas mudanças, já é possível olhar para o passado recente com visão histórica. O ex-deputado e ex-ministro Delfim Netto, 84 anos, é uma figura que pertence à história e seu depoimento, lido com visão crítica, informa.
"Nunca trabalhei na minha vida. Tudo que fiz foi por diversão, por prazer", declara. "Vou lhe dizer mais: você não escolhe a profissão, a profissão te escolhe. E quando você tem sorte, você nunca trabalha."

Do Valor.
O homem que se reinventou
Por Claudia Safatle
Unanimidade ele nunca foi. Mas é impossível ser indiferente a esse personagem que desde 1967 participa ativamente da vida econômica e política do país. Antônio Delfim Netto, 84 anos, é um homem que se reinventou. Foi ministro nos governos dos generais Costa e Silva, Emílio Garrastazu Médici e João Baptista Figueiredo e é um dos principais conselheiros dos governos da era PT. [...] Discretíssimo na vida pessoal, Delfim escondeu os 18 dias de coma e os 60 dias que passou internado no Incor (SP), há um ano e meio, com embolia pulmonar e um problema cardíaco que lhe rendeu dois 'stents' e quatro meses de ausência de suas atividades cotidianas. [...] Neto de imigrantes italianos, Antônio Delfim Netto nasceu e cresceu no Cambuci, bairro operário de São Paulo. Dona Maria Delfim, sua mãe, costurava para fora. "E eu ganhava um dinheirinho entregando os vestidos." O pai, José Delfim, trabalhava na CMTC, empresa de transportes da prefeitura de São Paulo. Tem duas irmãs mais novas, Filomena (nome da avó) e Terezinha, uma porção de sobrinhos e, agora, o neto Rafael, de um ano e meio, filho de sua única filha, Fabiana. O nome da filha remete à juventude, quando, segundo conta, era socialista fabiano, reformista, corrente que, afirma hoje, "trazia um equívoco fundamental, no qual eu também acreditava: de que o Estado deveria ser proprietário dos meios de produção". Foi a leitura da "Teoria dos Preços", de George Stigler, que o fez mudar de ideia. [...] Foi o primeiro aluno da FEA a tornar-se um de seus catedráticos e da escola só se desligou para se aposentar. "É uma coisa fantástica. Eu gastei 6 mil réis com um selinho para, depois, viver a vida inteira na universidade", conta. O selo era colado no título de admissão. "Aquilo garantiu a minha vida." Provavelmente, esteja aí o início da profunda ligação do ex-ministro da Fazenda, da Agricultura, do Planejamento e do deputado federal por cinco mandatos consecutivos, com o Estado. Em retribuição, Delfim doou à USP sua biblioteca de quase 300 mil títulos de economia, matemática, história, geografia, antropologia e estatística. "Me dá vontade de dar risada quando alguém diz: 'Mas vejam! É um absurdo esse negócio de educação e saúde gratuitos!'. Você até pode discutir se quer cobrar mais de um sujeito ou de outro. Mas a antropologia ensina: o macaco virou homem pelo conhecimento; e o homem só ganha a humanidade se tiver saúde". Antropologia é o "hobby" do economista. Dos tempos em que era jovem e frequentava um boteco na avenida Angélica, do seu amigo Horácio Coimbra, e bebericava com Paulo Vanzolini e Luís Carlos Paraná, restaram boas lembranças. "O primeiro disco que o Carlos Paraná gravou foi financiado pelo Café Cacique, do Horácio", recorda. Boêmio mesmo, nunca foi. "Sempre gostei de estudar." É o que mais gosta de fazer ainda hoje. Por quase quatro horas, Delfim falou com entusiasmo sobre os mais variados temas. A crise na Europa, a origem do homem, religiosidade, a democracia e os bons tempos em que estudou na USP. "O que mais me fascina é a origem do homem. Antropologia é a única coisa que leio fora da economia. Sou um amador, me entende? Mas tenho algumas convicções sobre por que o homem está aqui." Tem grande admiração pela parte antropológica da obra de Karl Marx. "O homem é um animal que produz trabalho, como a abelha faz o mel. Suas mãos produzem você, e o seu cérebro é produzido pelas suas mãos." [...] "Na minha opinião, tem duas teorias absolutamente fantásticas: o darwinismo e a física quântica. O Darwin a gente está começando a entender do que se trata; a física quântica dá certo, mas ninguém sabe por quê". Max Planck, prêmio Nobel de física em 1918, dizia: A física quântica ninguém sabe o que é, mas funciona. A economia, todo mundo sabe o que é, mas não funciona.

- Na sua visão, de onde viemos?
-"Somos a natureza tentando saber quem ela é.
- E para onde vamos?
- Aí é uma coisa hegeliana. É mais complicado...
- O senhor acha que há vida após a morte?
- Não sei. Mas acredito que tem alguma coisa que controla o mundo. Tenho minha própria religiosidade e acho que é uma ligação que não tem nada que ver com o racional. Eu gosto desse ponto de vista, acho que dá conforto.
Ele retoma a questão do processo civilizatório e conclui que a evolução é rumo a uma sociedade republicana, democrática.
"Tenho uma grande confiança na dialética entre a urna e o mercado. Cada vez que a urna exagera nos benefícios, o mercado vem e pune. E cada vez que o mercado exagera, vem a urna e pune."
Num momento em que a crise, tanto nos Estados Unidos quanto na zona do Euro, leva pensadores e movimentos sociais a questionar o regime capitalista e a prever seu fim, o ex-ministro não crê em alternativas.
"O capitalismo não foi inventado por ninguém. O homem foi procurando formas de produzir sua sobrevivência da maneira mais econômica possível. O capitalismo não tem fim. De vez em quando ele quebra, se recupera e sai da crise diferente de como entrou. O que se chama de capitalismo, portanto, nunca é a mesma coisa."
E conclui: "Cada vez que um cérebro peregrino inventa uma nova forma de organização, termina em porcaria".
A íntegra.